Samba Que Eu Quero Ver

Arte e Resistência: o Samba como voz do Novembro Negro

Estamos chegando ao fim do Novembro Negro, campanha que promove a valorização da herança afrodescendente e a luta contra o racismo estrutural. E, como bons amantes de samba, não poderíamos deixar de falar: o samba é coisa de preto! Um dos maiores legados de nossos ancestrais é a cultura do samba, cultura essa que tem uma história que se mistura com a trajetória do povo preto no Brasil. 

Ao longo de sua história, o samba enfrentou períodos em que foi alvo de discriminação e criminalização. O gênero musical tem suas raízes nas comunidades afro-brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro, e emergiu como uma expressão cultural vibrante nos primeiros anos do século XX.

No entanto, durante as primeiras décadas do século, o samba foi associado a estigmatizações sociais e raciais. Em muitos momentos, as rodas de samba e os locais onde essa manifestação cultural ocorria eram alvo de perseguição policial, tendo que ser feitas às escondidas em locais fechados, como terreiros de umbanda e candomblé. 

A ascensão do samba também coincidiu com a tentativa de apagamento do povo preto e a construção de políticas culturais que buscavam promover uma ideia de “brasilidade” alinhada com a elite cultural e econômica do país, ou seja, a branquitude. Isso resultou em tentativas de marginalizar ou reprimir expressões culturais consideradas “inferiores” ou fora do padrão estabelecido.

Apesar das adversidades, o samba resistiu e floresceu ao longo do tempo, assim como o povo preto, tornando-se uma das maiores manifestações culturais do Brasil. Ao superar a estigmatização e a perseguição, o samba conseguiu conquistar espaço na sociedade brasileira, ganhando reconhecimento nacional e internacional.

Onde estão as mulheres pretas do samba?

Ao transitar do ambiente privado, onde atuava como resistência, para o cenário público como símbolo nacional, as mulheres viram sua participação nesse processo diminuir devido ao arraigado machismo da época, que impunha a ideia de que a rua não era lugar para mulheres, entre outras questões. Assim, a predominância masculina nos espaços de samba teve início.

Um ponto de destaque no panorama feminino da história do samba, enfrentando todas essas dificuldades, é a figura de Madrinha Eunice, que foi a primeira mulher a liderar uma escola de samba, a Lavapés de São Paulo, que inicialmente surgiu mais como um cordão carnavalesco.

No entanto, somente a partir da década de 60 é que as mulheres conseguiram conquistar alguma visibilidade no cenário musical do samba, dando origem a nomes como Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Dona Zica, Jovelina Pérola Negra, Leci Brandão e Alcione.

Dona Ivone foi, em 1965, a primeira mulher a integrar a Ala de Compositores do Império Serrano, ao assinar em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau o samba-enredo “Os cinco bailes tradicionais da história do Rio”, considerado uma obra-prima do gênero. Em São Paulo, a primeira mulher a puxar um samba-enredo no Sambódromo do Anhembi foi Dona Bernadete do Peruche, que deu voz a “Quem arrisca, não petisca”, samba de Ideval Anselmo, Carlinhos e Zelão, no desfile da Unidos do Peruche de 1991.

Cenário atual: mulheres na arte

Não apenas no samba, mas artistas mulheres são minoria em diversos cenários artísticos em todo o mundo. Quando somado ao critério racial, o resultado se torna ainda mais alarmante. De acordo com dados de um estudo de 2019 realizado pela revista Public Library of Science, 87% das obras dos 18 principais museus dos Estados Unidos foram feitas por homens, 85% deles branco. No Louvre, há 25 autoras para 3,6 mil pinturas.

Poderíamos citar diversos cenários artísticos em que há desigualdades de gênero e raça, mas vamos retornar para a música. Uma pesquisa realizada por Thabata Arruda, proprietária da plataforma Ouça Música Independente, curadora e pesquisadora musical com foco em mercado, comportamento e identidade musical, analisou o line-up de diversos festivais brasileiros. Thabata constatou que a participação feminina nesses palcos não passou de 20% entre 2016 e 2018, sendo que em alguns festivais não houve a participação de nenhuma mulher. Não há recorte racial na pesquisa.

Cenário atual: mulher preta no samba

A história do Samba parece refletir a trajetória de mulheres negras que tentam ganhar a vida como cantoras desse gênero musical. Elaine Augusta é uma dessas mulheres. Ela é professora, atriz, cantora e escritora. Hoje Elaine caminha com o projeto “Samba de Preta”, que busca o resgate de sambas consagrados e assim trazer a voz da mulher na dramaturgia da música. 

“Já sofri muito preconceito por ser uma mulher que canta samba. Uma vez me convidaram para uma roda de samba onde só tinham homens tocando e cantando. Certo momento um dos integrantes da roda me convidou para cantar. Assim que me sentei, todos se levantaram. Ser uma mulher preta em uma sociedade machista e racista é lutar duas vezes mais para sobreviver e não se auto sabotar, pois tudo isso deixa marcas profundas”, contou Elaine.

Assim como o samba, Elaine cresceu periférica, potente e querendo conquistar o mundo. “Quando criança sempre gostei de música. Me via artista mas não sabia como e nem por onde começar, pois era pobre e da periferia, sem referência de outros músicos por perto”. Hoje ela vem se tornando grande referência do samba capixaba. “Tudo que sei aprendo todos os dias ao assistir e ouvir os que vieram antes de mim”, afirma.

A história de Elaine se assemelha com a de várias outras, como a de Sol Pessoa, reconhecida como uma das mais talentosas intérpretes do samba no Espírito Santo, encantando o público com sua voz única e carisma contagiante. Para ela, o cenário do samba capixaba já evoluiu muito, mas precisa evoluir ainda mais. “Precisamos entender que a estrela é a música! Sem preconceitos e unidos, faremos essa estrela brilhar ainda mais”, afirmou Sol.

Sol contou que o samba salvou sua vida e que hoje se dedica a alegrar a vida das pessoas por meio da música. “Cantar me tirou da depressão e me livrou da morte. Já sofri preconceitos, tive que batalhar muito e resistir para chegar até aqui. Hoje vivo do samba e sou reconhecida. O samba me salvou”, disse.

Ser mulher preta sambista é ser resistência. Assim como Elaine e Sol, o samba vem rompendo barreiras e amplificando a voz do povo preto. Neste Novembro Negro e em todos os meses do ano, é essencial lembrar que a luta contra o racismo não é apenas uma batalha do passado, mas uma demanda constante por justiça e igualdade. 

O samba ressoa como um eco da história, conectando gerações e dando voz e vez para o povo historicamente invisibilizado. O samba e o Novembro Negro têm origens similares e suas trajetórias também têm sido as mesmas: resistência, crescimento, representatividade, força e beleza. Viva o samba! Viva o povo preto!

Aline Almeida